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quarta, 3 de agosto de 2011 - 17:50

'Tenho certeza que tive contato com a aids, diz Ney Matogrosso

Pouco antes de estourar nas rádios, à frente do Secos & Molhados, Ney Matogrosso ouviu de uma cartomante que ele iria ganhar muito dinheiro e que seria uma espécie de Carmen Miranda. Na hora ele não entendeu, mas a referência à Pequena Notável tinha a ver com seus transgressores rebolados no palco e seu gosto por figurinos extravagantes.

A ousadia não desapareceu agora, quando Ney completou setenta anos no dia 1º de agosto, com o corpo e o gogó em ótima forma, mais muitos projetos em andamento. Ele vem recolhendo repertório para novos show e CD, sem datas definidas de lançamento. No cinema, ele atua como o protagonista de Luz nas Trevas, sequência do clássico O Bandido da Luz Vermelha, e é tema do documentário Olho Nu, dirigido por Joel Pizzini.

Sua postura rebelde e abusada é seguida à risca fora do palco, mesmo sendo Ney um homem discreto e reservado, que prefere “observar a ser observado”. Mas nem por isso ele deixa de dizer o que pensa, com naturalidade e franqueza pouco vistas no showbizz. Na entrevista que concedeu à Gente, em sua cobertura no Leblon, Ney falou abertamente sobre idade, sexo, descriminalização da maconha e a barra que enfrentou quando perdeu amigos e um parceiro para a aids. “Sempre me expus muito e com muita clareza. Nunca me escondi e sempre defendi meu direito à liberdade de expressão”, diz. Só não entrega como está sua vida amorosa hoje. “Esse assunto eu não abro”.

No palco você conserva a mesma ousadia de décadas atrás. Rebola, troca de roupa em cena, usa até tapa-sexo. Se fosse qualquer outro homem na sua idade poderia ficar ridículo. Mas com você não. Qual é o segredo?
Não sei. Acho que sempre me expus muito e com muita clareza. Nunca me escondi. Sempre defendi meu direito à liberdade de expressão, o direito de pensar diferente. Meu limite é estético. Se estivesse barrigudinho, já teria me recolhido. Mas não estou, então posso usar um figurino extravagante. E ainda estou cantando, minha voz ainda tem os agudos. Tenho bom senso.

Idade é ou já foi um grilo para você?
Foi, quando eu fiz sessenta. Fiquei um pouco inseguro, pensando se ia continuar podendo usar as minhas roupas. Fiz sessenta e vi que não mudou nada. Continuo sendo quem eu sou, vestindo o que sempre vesti e vivendo como eu sempre vivi. Então com setenta é a mesma coisa. Vai ficar tudo igual.

Antes do sucesso, você foi hippie e trabalhou como artesão. Viveu em alguma comunidade?
Não, mas vivia do que eu produzia. Era uma coisa muito instável, muito incerta. Nessa época, aluguei um ateliê de um amigo pintor em São Paulo que estava vago. Eram dois cômodos, em um eu dormia e no outro, trabalhava. O banheiro ficava do lado de fora. Eu vivia das minhas coisas. Trabalhei inicialmente com couro, depois com ráfia, fazia uns colares com penas e sementes, coisas assim.

Conseguia tirar seu sustento dessa atividade?
Sim. Não era uma vida fácil. Mas tinha o principal pra mim, que era a minha liberdade. Não fiz isso por necessidade. Foi por opção. É que eu não queria viver dento da sociedade organizada. Sempre contestei. Queria viver à margem dela. Nunca fui um coitadinho. Queria ter aquela liberdade de ir para onde o vento me levasse. Paralelamente, eu fazia teatro. Já dançava, cantava, e me caracterizava.

Seu pai era militar e você, um transgressor. Houve muito conflito em casa?
Nosso problema foi na minha juventude, até o momento que eu saí de casa, aos 17 anos. Naquela época, homem só saía de casa aos 21 e casado. Vim para o Rio servir na Aeronáutica, porque lá você vai como voluntário, não precisa ser chamado. Essa foi a maneira que encontrei para sair de casa. Mas foi uma briga porque ele não aceitava. E eu saí para a briga terminar. Percebia que se continuasse morando com eles, talvez eu fosse a causa da separação do meu pai com a minha mãe. E eu não queria carregar isso.

Conseguiram se entender?
Sim, gradativamente. Certa vez, ele foi me visitar em São Paulo. Chegou de tardinha, na hora que eu e meus amigos nos arrumávamos para ir a uma festa. Quando todos saíram, ele disse: “pra mim são todos putas e viados”. Respondi: “putas ou viados, eles estão na minha casa, são meus amigos e você não pode opinar”. Eu era a pessoa que para ele representava todas as coisas erradas, era muito diferente dos meus irmãos. E encarava ele. Mas meu tio, que meu pai considerava muito, ficou doente e eu o visitava muito para conversar. E esse tio teceu um comentário muito positivo a meu respeito. Então isso deve ter mexido com ele. Um dia, estávamos em São Paulo e, na hora de me despedir, dei-lhe um abraço e beijei o rosto dele. Ele tomou um susto inicialmente, mas daí me abraçou também e me beijou. Nunca mais a gente deixou de se beijar na vida, enquanto ele esteve vivo.

No palco você é abusado e espalhafatoso. Fora dele, gosta desse glamour?
Não! Sou avesso a tudo isso. Nada disso me interessa e quem vive assim não me interessa. Aquilo é uma coisa que acontece lá e só. Quando o show acaba já não sou mais aquele. E quem vai ao meu camarim esperando encontrar aquilo se dá mal, porque não rola. Sou uma pessoa normal, discreta, como qualquer outra. Prefiro observar a ser observado.

Sua geração usou a transgressão como forma de expressão na arte e na vida. Acha que o mundo encaretou?
Sim. A aids restringiu a liberdade. Foi um corte. Mas as liberdades adquiridas, ninguém pode tirar. Eu continuei vivendo com a mesma liberdade que eu tinha antes. Claro que com salvaguardas. Porque camisinha não existia naquele universo. Raramente alguém usava, quando não queria um filho.

Você já declarou que teve muita sorte por não ter contraído o vírus…
Sim. Mas não me peça explicação porque eu não sei dar. Já pedi essa explicação para muitos médicos e nenhum me deu. Ninguém me diz. Porque eu tenho certeza que tive contato com o vírus. Então como é que se explica isso?

Perdeu muitos amigos para a doença?
Sim. Já aconteceu de eu ir a mais de um enterro numa semana. E quando eu fui fazer o primeiro exame, tinha certeza. Não tinha como não estar. Tive um relacionamento estável sem camisinha. E dentro de casa também tive que conviver com isso.

Dentro de casa você conviveu com isso?
Sim. Tinha meu parceiro doente dentro da minha casa, que ficou dentro da minha casa até o fim. Então, a minha surpresa foi não estar. Quando comecei a perder meus amigos, fiquei sem referência, parecia que tinham quebrado todos os espelhos à minha volta. Porque os amigos são os nossos reflexos. E quando você perde essas referências, você fica sozinho no mundo, você não tem em quem se espelhar.

Você é a favor da descriminalização da maconha?
Acho que o Fernando Henrique Cardoso está certíssimo. Acho que álcool, cocaína, crack e oxi geram violência nas pessoas. Agora, maconha não mata e não deixa ninguém agressivo. Mas se uma pessoa fuma maconha e é violento é porque já é um fascínora. Leu Abusado (livro do jornalista Caco Barcellos)? Tem uma hora que os marginais se juntam para fazer um assalto e um deles fumou maconha. Tomou o maior esporro, porque ficou marcha à ré, retardado… O que mantém a maconha nesse embrulho de drogas pesadas é a hipocrisia.

E a cocaína?
Já cheirei, mas odiava. Nunca entendi, achava aquilo uma mentira. Mas eu me dava ao direito de chegar às minhas conclusões. Não queria viver caminhando sobre trilhos pré-determinados não sei por quem nem quando. Pela Igreja lá na Idade Média. A droga é uma questão que existe desde que existe gente no mundo. Então vamos parar de hipocrisia e vamos olhar com seriedade a questão.

Você fez muito pelo movimento gay no Brasil. Acha que ajudou muitos a saírem do armário?
Acho que ajudei. Eles me falam. Mas é uma pena, porque só ajudei a sair do armário, mas não estou ajudando a esclarecer a mentalidade. Acho que essa questão de parada gay… Você se expõe, luta, transgride, mas só para ter o direito de subir num carro de som e ficar lá em cima fantasiado se requebrando? A última parada gay reuniu quatro milhões de pessoas. Quatro milhões de pessoas decidem uma eleição. Não queiram apenas o direito de ficar de fio-dental se requebrando porque é muito mais que isso.

O que você leva de sua experiência com o Santo Daime, na década de 1980?
Pra mim foi uma experiência positiva. Funcionou como uma terapia, um mergulho intensivo em busca do auto-conhecimento. Nunca passou pela religião, pela busca de Jesus Cristo. Descobri coisas a meu respeito que eu não sabia e que nem sei dizer. Mas acho que não deve ser liberado indistintamente para qualquer pessoa que chega lá. É perigoso. Tomei o chá regularmente por um ano e meio e parei quando achei que estava na hora.

É ligado em alguma religião?
Não. Eu acredito num princípio criador e esse princípio criador é amoroso. Não posso acreditar num princípio que tenha um dedo apontado pra mim dizendo assim ‘você deve porque você nasceu de um ato sexual de uma mulher’. Não acredito nesse tal de Pecado Original. Isso é ridículo. Talvez o budismo seja a que mais se aproxime da minha maneira de pensar, que oferece liberdade total. Você é responsável pelo seu bem-estar. Então vá à luta, se coloque.

Você sempre foi muito sexualizado. Hoje qual é o grau de importância que o sexo tem na sua vida?
Ainda é tão importante quanto antes. Só não sou dependente dele como eu era. Eu era escravo do sexo. Eu vivia pra ele. Não sou mais. Mas ele é interessante. Eu gosto muito. O amadurecimento traz a compreensão de que é muito mais interessante sexo com amor, com carinho. Não que o furtivo seja errado. Mas eu só queria o furtivo. Se alguém quisesse me ver pela segunda vez eu dizia tchau. Agora também tem o seguinte: aquela única vez que eu estava com aquele ser humano eu amava aquela pessoa. Nunca saí com nojo de ninguém. Como ter nojo de alguém com quem você esteve na cama??

Qual é a sua visão do casamento?
Morar porta com porta, de preferência. Com banheiros separados e casa com dois quartos pelo menos. Morei junto uma única vez. Foi legal durante um tempo, mas depois vira uma rotina. Há momentos que eu gosto de ficar sozinho, que eu não gostaria de estar disponível.

Hoje você está amando alguém? Está apaixonado?
Esse assunto é a única coisa tabu. Eu não abro.

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